O golpe

Teodoro, empresário bem-sucedido, proprietário da TSS Empreendimentos, granjeou, em mais de trinta anos de estudos e trabalhos exaustivos, reputação de homem honesto, dedicado à família e ao trabalho, e fortuna invejável. Respeitado e admirado, adquiriu ascendência moral sobre muitos profissionais. Dotado de raro espírito empreendedor e de determinação incomum, superou as dificuldades intrínsecas à sua origem social. Ignorou a descrença das pessoas que lhe diziam que ele, pobre, tinha de contentar-se com a pobreza porque ‘quem nasceu para tostão não chegará a vintém’. Determinado a enriquecer-se e oferecer conforto para seu pai e sua mãe, estudou e trabalhou, com seriedade ímpar, e progrediu, numa vida repleta de altos e baixos, de fracassos fragorosos e de sucessos retumbantes, sem jamais desanimar, sem jamais pensar em desistir dos seus sonhos – e sempre com os pés no chão -, até erigir um conglomerado empresarial multimilionário.

Seu pai sonhava com uma viagem aos Estados Unidos, para conhecer o Grand Canyon que via nos filmes de faroeste que tanto admirava. Sua mãe sonhava com a Itália; desejava conhecer Nápoles e Florença. Ambos, admiradores de Beethoven, desejavam conhecer a Áustria. Teodoro prometeu, para si mesmo, entregar, um dia, para seu pai e sua mãe, passagens de avião, em primeira classe, para as cidades que eles desejavam conhecer, e pagar-lhes hospedagem nos melhores hotéis. Cumpriu a promessa antes de assoprar as velas do seu trigésimo aniversário, quando já havia amealhado fortuna calculada em cinco milhões de reais.

Nunca envergonhou-se, nem no auge da sua riqueza, aos cinquenta anos de idade, da sua origem simples, desprovida de conforto material. Nunca alimentou sentimento de desprezo pelo seu pai e pela sua mãe. Amava-os. Aquele casal de pessoas analfabetas o educou, com amor e carinho, o apoiou quando ele se lançou em empreendimentos arriscados, o aconselhou a agir com prudência e sabedoria.

De seu pai e de sua mãe Teodoro nunca ouviu censuras injustificadas, reclamações e conselhos acovardados. Deles sempre ouviu palavras firmes, lições edificantes que o encorajavam, que o animavam a nunca desistir dos seus sonhos.

Teodoro narra, para quem o deseja ouvir, episódios encantadores da sua infância e juventude livres, e, com pormenores chocantes, os capítulos horríveis das privações pelas quais passou – mas não o faz em tom de lamúria, e tampouco a destilar ódio à sociedade. Narra-os para engrandecer as suas conquistas, para enobrecer o nome de seu pai e o de sua mãe, para ilustrar aos seus interlocutores a difícil vida de uma parcela da população brasileira. Muitos dos seus interlocutores, no início, enquanto o ouvem, incrédulos, certos de que ele exagera no tom, com o propósito de comovê-los, rejeitam o que ouvem, mas, tão vívida a memória de Teodoro, persuadem-se de que ouvem relatos que traduzem, com exatidão, a infância e a juventude dele e as das outras pessoas com quem ele convivia. Teodoro alegra-se ao ver que a sua história e a história de sua família e a de amigos inspiram outras pessoas a estenderem as mãos aos desamparados.

Teodoro é um idealista. Para formular os seus ideais, ele, em nenhuma doutrina religiosa se inspirou, nem em um sistema filosófico, tampouco em uma teoria econômica e em uma teoria política. Os seus ideais, fruto da educação que recebeu de seu pai e de sua mãe, nasceram de uma crença sincera no valor humano e no direito de os humanos viverem plenamente a vida e usufruírem de todos os prazeres que ela oferece. Ao contrário dos idealistas aferrados aos sistemas de pensamentos e às teorias políticas, Teodoro jamais impôs os seus ideais às outras pessoas, principalmente àquelas às quais ele estendeu as mãos para ajudar. Dotado de espírito democrático, e utopista, não inseriu, na sua concepção de utopia, os infalíveis elementos das utopias concebidas por intelectuais: governos autoritários que subjugam os indivíduos, que não passam ou de escravos ou de autômatos acéfalos. Na utopia de Teodoro não há espaço para um governo central opressor, nem doutrinas de qualquer tipo; nela, os indivíduos são plenamente livres. Poder-se-ia dizer que Teodoro era uma pessoa que vive com a cabeça nas nuvens. Tal apreciação não corresponderia à realidade, pois ele, dotado de inteligência prática invejável, tem a cabeça nas nuvens, sim, mas anda com os pés no chão.

*

Apresentado Teodoro, relato um capítulo da sua vida.

Há dez anos, Teodoro deu início a uma sequência de equívocos que o fez cometer injustiça contra um dos seus funcionários, ao julgá-lo e condená-lo sem dar-lhe direito à defesa.

Teodoro envergonha-se, sinceramente arrependido, da injustiça que cometeu. Nunca escondeu de seus familiares e amigos os seus erros. Jamais se negou, quando indagado, a narrar, com pormenores ilustrativos, o episódio. Ao narrá-lo, nunca distorceu o papel que protagonizou. O episódio, do qual se envergonha, sinceramente arrependido, ele, ao narrá-lo, o apresenta como um exemplo de injustiça, que qualquer pessoa, baseando-se em suspeitas infundadas, é suscetível de cometer, ao julgar o caráter de outra pessoa. Com sinceridade constrangedora, fala dos seus erros para todas as pessoas que se dispõe a ouvi-lo. Nota-se, no seu tom de voz, forte, e na pronúncia das palavras, correta, sinceridade e constrangimento, e, no olhar, vergonha, arrependimento e coragem de expor-se. Nunca disse que agiu por instinto, e, portanto, não teve consciência dos seus atos, ou que, ao perder, momentaneamente, a razão, cometeu a injustiça. Narra, para seus filhos, para os quais nunca se apresentou como pai perfeito, que eles têm de, obrigatoriamente, reverenciar, o episódio com as mesmas tintas que o narra para todas as outras pessoas. Com invejável sentimento de justiça, apresenta o espírito de cada um dos três protagonistas – Teodoro, Ulisses e Raul – com correção.

Para a reconstituição dos eventos que compõem tal episódio, no desejo de apresentar um relato imparcial, ponderei, e considerei os testemunhos de Teodoro, Ulisses, Raul e os de alguns outros personagens envolvidos.

Não considerei os relatos de pessoas que não participaram diretamente dos eventos aqui narrados.

Nenhum vínculo possuo com os três protagonistas, e eu os desconhecia até o momento que com eles entrei em contato para reunir informações para este relato. Suprimi as informações desencontradas. Busquei, na medida do possível, dar coerência e consistência ao relato. Os três principais envolvidos na história poderão apresentar as suas observações, e contestarem-me se assim o desejarem, e se entenderem que a maneira como eu os retratei não corresponde à realidade e os prejudica. Saibam, aqueles que se pronunciarem contrários ao meu relato, que todas as contestações serão analisadas, e não serão levadas em consideração se não houver provas que as sustentem.

A TSS Empreendimentos, em franco progresso, ao dar início às suas atividades internacionais, com uma filial nos Estados Unidos e uma na Índia, passou por um processo de reformulação do organograma. Teodoro e os integrantes da diretoria da TSS Empreendimentos assimilaram novos e modernos conceitos empresariais, certos de que, atuando, com desenvoltura, em um mercado de dimensões consideravelmente maiores do que o com o qual se depararam até então, poderiam alcançar o sucesso almejado. A concorrência, mais agressiva, voraz e desafiadora do que a nacional, impor-lhes-ia novas exigências, e a TSS Empreendimentos, para não sucumbir aos concorrentes, teve de ser reformulada para a adoção de modernas técnicas de produção. Todos os trabalhadores foram treinados nas novas técnicas, e profissionais gabaritados, formados nas melhores universidades do mundo, com experiência internacional, foram contratados a peso de ouro.

Teodoro conheceu vários profissionais extraordinários. Selecionou os melhores dentre eles. Dentre os selecionados, dois destacaram-se: Ulisses e Raul. Teodoro lhes fez propostas irrecusáveis. Ulisses e Raul, profissionais experientes e astutos, iriam, antevia Teodoro e os diretores da TSS Empreendimentos, gerar grande lucro para a empresa. Ambos, de inteligência prática comprovada, dotados de raro vigor intelectual, ganharam, em pouco tempo, o respeito de Teodoro e dos diretores da TSS Empreendimentos. Ambos, ambiciosos, almejavam a presidência da empresa. Não ocultaram, nem de Teodoro, o que pensavam, o que almejavam; e Teodoro não os censurava; e a rivalidade entre eles não passou despercebida de Teodoro, que não os reprovava, e também não os incentivava a lutarem entre si pela presidência da empresa, pois, sabia, se os incentivasse a lutarem entre si, exacerbaria sentimentos que os conduziriam à destruição, cada qual, da sua carreira, além de prejudicar, com conflitos abertos – ou silenciosos, como numa Guerra Fria -, a empresa, pois estimularia desavenças entre os funcionários, que se reuniriam em dois grupos hostis. Não desejava converter a TSS Empreendimentos em uma terra sem lei, nem rei. Teodoro não inibiu Ulisses e Raul. Não os impediu de desafiarem-se um ao outro, de se provocarem, com alfinetadas polidas. A rivalidade entre eles, sabia Teodoro, se corretamente estimulada e administrada, redundaria em ganhos consideráveis para a TSS Empreendimentos. De nenhum dos dois Teodoro admitiria golpes desleais e artifícios desonestos. Estudou o comportamento deles, e os manipulou, em benefício da TSS Empreendimentos. Qualquer passo em falso, sabia Teodoro, faria com que eles reagissem de modo a prejudicar a empresa.

Certo dia, chegou aos ouvidos de Teodoro uma notícia perturbadora: ou Ulisses, ou Raul, um deles, ou os dois, planejava removê-lo, com um golpe traiçoeiro, da presidência da TSS Empreendimentos. Tal objetivo seria concretizado com o apoio de acionistas. Teodoro, num primeiro momento, incrédulo, rejeitou a notícia. Entretanto, o seu senso de realidade, a sua capacidade de ignorar os seus sentimentos e os seus desejos fê-lo pedir mais detalhes sobre a postura de Ulisses e de Raul à pessoa que lhe levara a perturbadora notícia. E o que ouviu estarreceu-o. Nesse dia ele reconheceu, para seu infortúnio, que possuía víboras peçonhentas bem próximas de si e que havia sido ele, Teodoro, que havia aberto a porta da TSS Empreendimentos para elas. Convenceu-se que a sua imprevidência custar-lhe-ia caro. Mas quem seria o traidor? Ulisses? Raul? Ou os dois? Pensava: “Quem quer me remover da presidência da minha empresa? Quem me prepara um golpe traiçoeiro? Ulisses? Raul? Ulisses e Raul? Quem prepara o terreno para eles? Tenho de desconfiar de qual deles? Posso confiar em um deles? Não me agrada a minha situação. Tenho de suspeitar de duas pessoas que admiro e respeito. Ulisses e Raul são inteligentes, espertos, astutos. Não os subestimo. Guardarei comigo as minhas suspeitas. Irei investigá-los. Se eu der um passo em falso, eles perceberão que os observo, e, ou mudarão de estratégia, ou adiarão os próximos atos, até encontrarem o momento propício para me encaixarem um golpe certeiro, e me derrubarem. Eles não me concederão nenhuma chance ou para eu me defender, ou para eu me antecipar ao golpe que me preparam. O que farei? Mantê-los-ei próximos de mim? Não modificarei as minhas atitudes. Agirei como sempre agi. Se Ulisses e Raul estão unidos contra eu, enfraquecerei a união deles, ou, o que me será melhor, destruí-la-ei. Se Raul é o meu adversário, usarei Ulisses contra ele; se Ulisses é o vilão desta história, jogarei Raul contra ele. Mas… Ronda-me uma ameaça… Poderei, certo de que faço em meu favor, jogar Raul contra Ulisses, e Raul, mais tarde, revelar-se tão perigoso quanto Ulisses, ou até mais perigoso do que ele. E se eu jogar Ulisses contra Raul? Ou devo lançar Ulisses contra Raul e Raul contra Ulisses… Jogarei um contra o outro… Que os dois engalfinhem-se, destruam-se. Terei a paciência de Jó, a sabedoria de Salomão e a astúcia de Odisseu. Serei pragmático, realista, frio, calculista. Estou entre inimigos, em uma guerra pelo domínio da minha empresa. Tenho experiência e inteligência suficientes para saber que estou pisando em terreno minado. Não me distrairei, nem por um milionésimo de um milionésimo de um milionésimo de um segundo.”

Teodoro estabeleceu, com pessoas da sua confiança, meios de detectar as artimanhas de Ulisses e Raul, na hipótese de que ambos, unidos, jogavam, com deslealdade, contra ele, Teodoro, que a nenhum dos seus subordinados desejava entregar a presidência da TSS Empreendimentos – estava estabelecido que ele conservaria consigo a presidência da empresa até a sua aposentadoria compulsória, aos setenta anos, e assumiria a presidência do conselho consultivo.

Transcorreram-se os dias. Teodoro assistiu à deterioração do relacionamento de Ulisses e Raul – que nunca havia sido amigável; eles nunca se entenderam; as provocações recíprocas eram, conquanto ferinas, polidas. O respeito que dedicavam um ao outro decorria de cálculo frio, não de um sentimento sincero de respeito e consideração. À medida que transcorriam-se os dias, Ulisses e Raul, percebia Teófilo, trocavam farpas agudas e comentários maldosos, em alguns casos com o dedo em riste na cara de um e de outro. Tais demonstrações de desprezo recíproco sucediam-se, com o passar dos dias, a intervalos mais curtos. Ofendiam-se Ulisses e Raul, sem meias-palavras. Eram diretos e ríspidos. Disparavam suspeitas sobre a honestidade, o talento profissional e a sexualidade, e sobre a fidelidade das esposas, e sobre a honestidade, a sexualidade e o caráter dos filhos. Teodoro surpreendeu-os, em mais de uma ocasião, imersos em discussões acaloradas. Perguntava-se se Ulisses e Raul eram, efetivamente, rivais viscerais, inimigos umbilicais, ou se desejavam confundi-lo, induzindo-o a aliar-se a um deles, contra o outro – e Teodoro aliar-se-ia a um seu inimigo contra outro inimigo, enfraquecendo-se; se Teodoro revelasse os seus pensamentos, ou para Ulisses, ou para Raul, crente que ele era seu aliado, poderia vir a ser por ele surpreendido, e seria arrasado. Desconfiado, Teodoro não buscou aliança nem com Ulisses, nem com Raul.

Meses depois, Teodoro convenceu-se que Raul e Ulisses eram hostis um ao outro. Teodoro sabia que eles eram ambiciosos e almejavam a presidência da TSS Empreendimentos. Mas qual deles era profissional leal e qual era traiçoeiro e desleal? Teodoro empenhou-se em descobrir quem lhe era leal, ou, se não lhe era leal, agia, como profissional, respeitando as normas da TSS Empreendimentos, preparando-se para, um dia, assumir dela a presidência, e quem lhe era desleal e planejava arruiná-lo. Compreendia os seus subordinados. Sabia que ambos eram ambiciosos. E os admirava. Teodoro também era ambicioso. E não se censurava. Para ele, a ambição, ao contrário do que dizem muitos moralistas, é uma virtude, e não um vício. Não tinha ele porque se reprovar, e porque reprovar Ulisses e Raul. Admirava-os. Respeitava-os. Tinha ciência de que a TSS Empreendimentos progrediu porque pessoas ambiciosas – Teodoro, Ulisses, Raul e centenas de outros profissionais – trabalharam para ela. Desejava Ulisses e Raul na folha de pagamentos da TSS Empreendimentos por muitos anos. Mas, se eles agiam com deslealdade, com desonestidade, puni-los-ia com rigor.

Certo de que Ulisses e Raul não eram aliados, Teodoro esforçou-se por descobrir qual deles preparava-lhe o golpe traiçoeiro. Ulisses? Raul? Se descobrisse que Raul era o seu inimigo, Teodoro poderia confiar em Ulisses e aliar-se a ele? Se descobrisse que Ulisses era o seu inimigo, Teodoro poderia confiar em Raul e aliar-se a ele?

Teodoro não dava a entender que desconfiava de Ulisses e de Raul, e reunia informações a respeito deles. Não deixava escapar de si nenhuma evidência que pudesse levá-lo à resposta para a pergunta: Quem é o meu inimigo: Ulisses ou Raul?

Teodoro não descobriu quem era o seu inimigo; no entanto, acreditou, dissuadiu-o do golpe, e ao não identificar o seu inimigo, sabia, a ameaça continuaria a pairar sobre a sua cabeça. E previu que ou Ulisses, ou Raul, arquitetaria outro golpe, e preparou-se para recebê-lo, e revidá-lo, se fosse o caso, ou antecipar-se ao seu inimigo, e destroçá-lo; se a ele não se antecipasse, desgastar-se-ia, debilitar-se-ia, e ficaria vulnerável ao ataque de um rival de pouca expressão, pois, sabia, fragilizado, atiçaria a ambição de muitas pessoas que aguardavam, pacientemente, por um momento propício para pôr as garras de fora.

Sempre que conversava com Ulisses e Raul, punha-se de sobreaviso, calculava as palavras que dizia, atentava para as palavras que lhe diziam, e procurava identificar os interesses subjacentes a elas. Não podia dar um passo em falso. Até quando manteria a mente fria, os pensamentos ordenados, concentrado no seu trabalho e, ao mesmo tempo, agiria, sem cometer um deslize que alertasse ou Ulisses ou Raul? Não sabia até quando suportaria a pressão. Previu que, logo, alguém cederia, ou ele, Teodoro, ou Ulisses, ou Raul.

Teodoro reuniu novas evidências. Estudou-as. Convenceu-se de que Ulisses era o seu inimigo. Ele, áspero no trato, com atitudes esquivas, agressivas, evasivas, hostilizava-o. Teodoro concluiu que ele notara que o investigavam e sabia que ele, Teodoro, criava-lhe obstáculos para impedi-lo de ascender à presidência da TSS Empreendimentos. Ulisses desrespeitava Teodoro, abertamente. Desprezava-o. Desdenhava-o. Intransigente, procurava impor as suas idéias. Exibia os seus pendores inquisitoriais. Raul, por sua vez, era afável com Teodoro. Com ele se reunia, com freqüência, para tratar de assuntos do interesse da empresa. Assumiu incumbências que eram de Teodoro, livrando-o de compromissos indesejáveis. Era claro, direto, eloquente, espirituoso, prestativo. Tinha a amizade e o respeito e a consideração dos funcionários. Era diplomático. Nas reuniões, pronunciava-se, sempre, com tranquilidade, ponderação e elegância. Transparecia lealdade e franqueza.

Considerando-se unicamente as descrições de Ulisses e de Raul apresentadas no parágrafo anterior, concluir-se-ia que Teodoro, sem hesitar, decidiria: Demitiria Ulisses e aliar-se-ia a Raul. As descrições, em retrospectiva, dão a impressão de que todas as respostas estavam ao alcance das mãos de Teodoro. Teodoro, assim que se convenceu de que Ulisses era o seu inimigo, não se aliou a Raul, pois, suspeitava, ele lhe escondia os seus verdadeiros propósitos; além disso, a mudança do comportamento de Ulisses talvez fosse causada por problemas pessoais que Teodoro ignorava.

Raul acumulava, a cada dia, mais poder na TSS Empreendimentos. No trato com Teodoro era mais livre, mais aberto; e dele tornou-se confidente.

Ulisses, intransigente e intragável, com Teodoro era ríspido e grosseiro. Teodoro, por sua vez, com ele não tratava de assuntos importantes. Hostilizava-o. Sonegava-lhe informações imprescindíveis ao correto exercício do trabalho dele, prejudicando-lhe a reputação. Resultado: Ulisses enfraqueceu-se. Em contrapartida, Raul fortalecia-se, e concentrou muito poder em suas mãos; um dia, o seu poder rivalizou-se com o de Teodoro, e, na cabeça de Teodoro, disparou alarme estridente. Teodoro se viu indagando que loucura cometia ao oferecer tanto poder a Raul, e, apreensivo, reconheceu que se enfraquecia ao enfraquecer Ulisses e fortalecer Raul, que, paciente e sorrateiramente, solapava o chão sobre o qual ele, Teodoro, pisava.

Um relatório de um escritório de consultoria empresarial e um de um escritório de auditoria convenceram Teodoro de que Raul manipulava dados em seu próprio benefício.

Teodoro não entendeu como pôde ser tão ingênuo a ponto de não perceber o que ocorria ao seu redor. Convocou uma reunião, e expôs para a diretoria o conteúdo dos relatórios. Enquanto exibia os gráficos, as tabelas, os organogramas, os documentos, as assinaturas, todos voltaram-se, estupefatos, para Raul, que, lívido, os olhos esbugalhados, suando nas têmporas, o rosto suplicante, dava a entender que não compreendia o que ouvia.

Encerrada a exposição dos relatórios, Teodoro fitou Raul, que, intimidado, disse:

– É ultrajante. Nos relatórios, inverdades. Nunca assinei tais documentos. Nunca autorizei tais transferências de dinheiro. Nunca negociei com Hugo Ugo, que, sei, é uma empresa de fachada. Nunca…

– Cale-se! – interrompeu-o Teodoro, com um grito seco. – Nada do que exibi é verdade? Dois escritórios conceituados estudaram a empresa e ambos revelaram que você, além de desviar uma boa soma de dinheiro da empresa para a sua conta no exterior, pretendia induzir-me a cometer erros que me removeriam da presidência da minha empresa. Você se atreve a dizer, com toda a desfaçatez do mundo, que os relatórios não revelam as suas falcatruas, as suas maquinações? De quem são estas assinaturas? Além de você, quem tem acesso às informações privilegiadas do seu departamento? Quem tem as senhas das contas, Raul? Apenas você as tem. Cometi um erro, um erro grosseiro, um erro imperdoável: confiei em você. Não persistirei no erro. Você há de me pagar caro pela traição. Você não fez jus à confiança que em você depositei. Você há de me pagar caro. Você se apresentou como profissional nobre, leal, respeitável, honesto, irrepreensível. Enganei-me… Você me enredou nas suas artimanhas. Você me golpearia pelas costas, e me derrubaria, e me destruiria… Não se faça de inocente, Raul. Não se atreva a ofender a minha inteligência. Você pagará caro. Eu a me enredar nas suas artimanhas… Forneci para você a munição que você pretendia usar para me atacar e me destruir! Confiei em você… Você me afagou o ego. Bajulou-me… Fez-se de amigo! Fez-se de leal! Fez-se de profissional acima de qualquer suspeita! E eu a engolir… Um afago no ego… Envaidecido, deixei-me embrulhar. Dê adeus à sua carreira, Raul. Você pagará caro! É constrangedor! Confiei em você, e você a me preparar um golpe traiçoeiro. Você e a sua corja! Você não tem palavras para usar em sua defesa, Raul. Não ouse abrir a boca para falar, seja o que for, em sua defesa… Você é desprezível… Você… Você é desprezível… Desprezível! Você está demitido, Raul. Demitido! Demitido! Você há de pagar caro! Já falei com o diretor do departamento jurídico. Ele falou com os advogados, e tomará as providências cabíveis ao caso. Você pagará caro! Retire-se da minha sala. Retire-se da minha empresa.

Raul, cabisbaixo, ombros curvados, passos vagarosos, arrastando os pés, caminhou até à porta, e deteve-se. Ergueu a cabeça. Encheu os pulmões de ar, e esvaziou-os de uma só vez. Segurou a maçaneta, e girou-a, e abriu a porta. Com passos firmes, retirou-se da sala, e fechou a porta atrás de si.

*

– Papai, há um homem lá fora – disse Vladimir para Raul. – Ele disse que quer conversar com você.

Raul, que podava a roseira, abandonou a tesoura, e foi à varanda. À porta, Teodoro aguardava-o.

– Há quanto tempo, Raul? – perguntou Teodoro, fitando Raul nos olhos. – Podemos conversar?

– Depois de tantos anos…

– Por favor… Peço a você, Raul, encarecidamente, que me ouça…

Raul abriu a porta, e pediu a Teodoro que entrasse. Caminharam até à sala de visitas. Raul indicou um sofá a Teodoro, que se sentou, e sentou-se em outro.

Teodoro rompeu o silêncio:

– Há quanto tempo… Não me lembro quando foi que estive aqui pela última vez… Está tão diferente… Ali havia um quadro… Com uma paisagem… Um rio… Montanhas… Lembro-me… Pássaros… Águias… A mesinha de centro… Retangular… A parede, amarela… Amarelo-alaranjada… A lâmpada… Eu… Sabe, Raul… Eu… Como dizer… Quais palavras… Depois de tantos anos… Quantos anos? Quatro? Cinco anos… Raul… Você não imagina como esses cinco anos foram terríveis pra mim. E pra você… Pior… Certamente, pior… Um pedido de desculpas… Você está bem? Sei que você está desempregado… Aquele menininho é seu caçula? Eu não o conhecia… Vladimir… Ele me disse… Espertinho… E onde está a Susana? E a Zuleika? E o Irineu? Eu o vi, no sábado. Está grande, o garoto. Garoto? Ele está homem feito… Disseram-me que ele vai pra faculdade. Engenharia? São Paulo… Osasco… O Irineu… Eu… Eu não o via há muito tempo… E… Sabe, Raul… Os filhos sempre nos dão preocupações. Sabe… Raul, eu… Vim pedir desculpas. Raul… Você merece ouvi-las. Você não imagina… Fiquei arrasado ao saber da verdade. Eu… Se eu pudesse… Se existisse máquina do tempo, eu compraria uma passagem pro passado… Antes de demitir você… Eu iria pra… Pensei em vir… Você imagina, Raul… Difícil tomar a decisão de vir… De vir pedir desculpas pra você… Há quatro anos… Quatro, ou cinco… Não importa… Demiti você… Meu Deus! Raul, você… Sinto-me culpado… Peço, Raul, que me desculpe… Eu não podia imaginar, Raul… Eu… Com raiva… Lembro-me como se tivesse ocorrido ontem. Assim que eu soube da verdade, Raul, o mundo desabou sobre a minha cabeça. Os relatórios… As tabelas… Os gráficos… Os organogramas… Os documentos… As suas assinaturas… Não eram suas… As fotos… Raul… As assinaturas eram suas… Pensei que fossem… E as tabelas… Os documentos incriminavam você… As assinaturas… Os documentos… Em seu favor, a sua palavra… Como eu ia saber, Raul? Errei… Sei que errei… Não posso voltar no tempo e corrigir o erro… Raul… Sei que errei. Sei que não posso… Não tenho direito de pedir pra você esquecer o que aconteceu… Não tenho esse direito… Sei que… O que aconteceu, aconteceu… Errei, sei. Fui injusto… Prejudiquei você… Prejudiquei sua família… A Susana… A Zuleika… O Irineu… O Vladimir… Vocês… Eles… Você… Perdoe-me, Raul… Entenda-me… Não… Não me entenda… Sei quem… Raul, eu… Você foi o mais leal dos meus funcionários… Hoje eu sei disso… Não faz diferença… Sei a verdade… Falar… Não irá apagar o que aconteceu… Você merece ouvir, Raul: Você é um homem trabalhador, honesto, inteligente… Você não mereceu o tratamento que recebeu… A sua assinatura, falsificada… Os relatórios, falsos… As assinaturas não eram suas… Falsificações… Perfeitas… Os dados, manipulados para prejudicar você… Sei, há… Falsificações… Assinaturas falsas… Documentos falsos… O Ulisses… Raul, o Ulisses quis me derrubar… Raul, ele… Ele, Raul, ele, e não você… O Ulisses… Raul, o Ulisses… Quase perdi a TSS… A TSS não escapou de minhas mãos… Ainda conto com amigos leais e profissionais honestos. De boa índole… Defenderam-me… Ajudaram-me… Sou grato a todos eles… Por um triz… Um triz… Quase, Raul… Quase perdi a TSS… Foi… O horror que vivi nestes cinco anos… Por um triz… Se eu perdesse… Eu viveria na miséria… Minha esposa viveria na miséria… Meus filhos, na miséria… Meu pai… Minha mãe… Raul, só de pensar… Pensar em meu pai e em minha mãe… Meu coração… Um peso no coração… Um aperto… Perdoe-me… Raul, quase perdi a TSS, a casa… Não sei se eu suportaria tal golpe. Eu me reergueria… Me desencaminharia… Fiquei com medo de perder… Se eu perdesse… O que seria de minha mãe? O que seria de meu pai? E de Samantha? E de Beatriz? E de Paola? E de Gustavo? E de Leandro? Raul… O que seria de minha família? Raul… Entendo… Não… Não entendo… O Ulisses… Ele me jogou contra você… Pensei que você me bajulava… Ele, com rispidez… Pensei que… Ele, Raul, contratou um estelionatário… Uma organização criminosa… Raul, o Ulisses contratou estelionatários para falsificarem a sua assinatura. Em nenhum momento, Raul, passou-me pela cabeça… Não desconfiei das maquinações dele… Não desconfiei… O Ulisses, Raul, subornou… Manipularam os dados… Você, Raul, parecia… Você… Você, o suspeito… O suspeito de tramar contra mim… E é inocente… Inocente… Raul, as duas consultorias, conceituadas, insuspeitas… Não imaginei, Raul… O Ulisses enganou-me… Cometi uma injustiça… O Ulisses… Por favor, Raul… Raul, por favor, desculpe-me pelo que fiz a você… Por favor… Entenderei, se você não quiser me desculpar… Prejudiquei você… Prejudiquei sua família… Entenderei, se… Por favor, Raul, desculpe-me, Raul… Perdoe-me… Perdoe-me…

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Olavo de Carvalho

Notas das redes sociais reunidas

sapientiam autem non vincit malitia

Um blog do Olavo de Carvalho